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terça-feira, 2 de março de 2010

O Processo



Cheguei ao tribunal pouco faltava para as três da tarde, enfiado no velho fato de cotelê verde seco que herdei do padrinho Arnaldo, no dia em que o saudoso mecenas entregou a alma ao criador, um fato que me assentou que nem uma luva durante anos, mas que agora ameaçava explodir a cada inspiração menos controlada. Às vezes para parecermos arrumadinhos e peralvilhos, acabamos por passar momentos muito desconfortáveis, não é? Adiante.
No átrio, onde aguardei sereno mas ansioso pela chamada do oficial de justiça, encontravam-se mais quatro ou cinco cidadãos que não reconheci. Penso que nenhum deles me reconheceu também.
À hora marcada, três e meia em ponto, a justiça chamou-me. Estranhei a pontualidade. O diligente funcionário fez-me entrar na sala de audiências onde se perfilavam sentados, lado a lado, três magistrados de ar cinzento e sábio. Pelo canto do olho direito consegui perceber que a sala se encontrava praticamente vazia. Pelo canto do olho esquerdo consegui divisar dois indivíduos de sobrancelhas grossas e calvice acentuada que marcavam presença com ar desconfiado e conspirativo. Não reconheci nenhum deles.
Plantado em frente ao triunvirato pelo oficial de justiça que me havia encaminhado ao banco dos réus, aguardei. Depois de segundos de incerteza, que mais pareceram uma eternidade, fui mandado sentar pela justiça. Assim fiz. Apenas o magistrado do meio falou:
- Como se chama?
- Relaxoterapeuta, meritíssimo.
- Ah, tem nome… e bilhete de identidade? E número de contribuinte?
- Também, meritíssimo.
- Estou a ver! Onde mora?
- No Casal da Formiga, meritíssimo.
- Sabe porque é que aqui está?
- Não faço a mínima ideia, meritíssimo.
- Parece que o senhor anda a escrever umas coisas… Tem ideia do transtorno que causa escrever coisas ocultando a face?
- Meritíssimo, apenas escrevo o que penso, quando acho oportuno.
- Ah! E pensa, e tudo! Deixe-se de rodriguinhos e diga-nos lá o que esconde! O que ambiciona afinal?
- Mas, meritíssimo, não escondo nada. O que escrevo é aquilo que sou, apenas.
- Tem alguma coisa de mais substancial a contar-nos?
- Meritíssimo, sou um homem simples. Não sou letrado nem culto, apenas tive bons pais e bons companheiros. Não ambiciono mais do que viver uma vida feliz, os meus vizinhos do Casal da Formiga podem testemunhá-lo. Sou sócio dos bombeiros e do Império, gosto de partilhar o pouco que tenho e nunca chamei a ninguém de cobarde, pedante ou ressabiado, sem ser olhos-nos-olhos. Mas já dei e levei uns murros nas trombas. Perdão, estou-me agora a lembrar, uma vez chamei “vaca de merda” à minha ex-mulher, mas isso foi no calor dos pós-separação, depois de ter descoberto que a desgraçada antes de partir, por vingança, me tinha partido uma garrafa de Barca Velha e colocado à disposição do Piruças, o cão de um vizinho meu, um Pata Negra que me tinha custado os olhos da cara. E essas coisas custam muito, meritíssimo! Felizmente não tocou nas Ginas...
- Continua pois a relativizar a situação! Pensa que pode brincar com a justiça, é?
- Longe de mim tais pensamentos, meritíssimo! Mas afinal o que há contra mim?
- Um processo.
- De intenções?
- O senhor me dirá…
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5 comentários:

mata ratos disse...

mais do mesmo......................

Anónimo disse...

Eu gosto!!!!

não me fecundem sff disse...

Lindo...

ai ai disse...

Mais um excelente texto com que o relaxoterapeuta nos brinda. A diferença é que este só precisa de uma leitura para ser logo entendido. Claro que o defeito é meu quando me refiro ao facto de noutros textos ter que ler e reler e aí perceber tudo, dada a brilhante capacidade de sintese do autor.

A propósito! O pessoal está muito calado. Terá a ver com o tal "processo" ou aquelas noticias sobre o "jumento" estão a deixar o pessoal cheio de cagufa?

Acintoso disse...

Pois é...
Dizer que gosto, não vale a pena, já que seria repetir-me, posto que o digo sempre (ou quase sempre) quando leio um texto do Relaxoterapeuta.
Também direi que as verdades incomodam muita gente e, dizê-las, seja de cara destapada ou atrás do biombo de um nome fictício, pode tornar-se chato e incómodo para alguns!
Mas há que continuar a dizer o que se pensa e a não aceitar o ‘status quo’, sejam quem forem os destinatários, por mais incomodados que se possam sentir os receptores...
Só o tribunal da nossa consciência nos julgará!