A questão é muito interessante e cada vez mais pertinente. Foi aqui mesmo objecto de alguma discussão a quando da suspensão de mandato de Barros Duarte e volta a sê-lo a cerca de um ano picos das próximas autárquicas, numa altura em que, com esse cenário como pano de fundo, se afinam as estratégias, se tenta correr contra o tempo para mostrar obra e se começam a perfilar os candidatos.
Votamos em pessoas ou em partidos?
Porque em tese esta questão poderá ser resolvida com relativa facilidade, recorrendo ao enquadramento constitucional previsto, na prática as opiniões são divergentes e dificilmente serão consensuais. A resposta mais óbvia e no fundo a que mais importa, é o que cada um de nós cidadãos eleitores com direito a um voto, considera ser relevante quando confrontado com diferentes projectos e candidatos, afectos a diferentes partidos ou a meros grupos de cidadãos (no caso das autárquicas). E essa escolha corresponde na maioria das vezes, muito mais a critérios emocionais do que racionais, onde a relevância dos candidatos que dão a cara pelos projectos políticos que representam não pode de maneira nenhuma ser ignorada.
Para “enriquecer” a reflexão,
transcrevo um texto publicado no Diário de Notícias de 26 de Agosto de 2006, da autoria da politóloga Marina Costa Lobo, na sequência da substituição do presidente da câmara de Setúbal, não devendo contudo relevar para a reflexão o caso em concreto (uma vez que a substituição de autarcas é transversal a todas as forças políticas não sendo um exclusivo da CDU), mas antes a questão colocada em abstracto.
"Partidos ou candidatos?"
"Esta semana, o PCP decidiu pedir ao presidente da Câmara de Setúbal, Carlos Sousa, que apresentasse a sua renúncia ao cargo. Em torno deste facto existem dados dispersos: um inquérito do IGAT, reformas compulsivas de funcionários na câmara, associação do autarca à ala renovadora do PCP. Sobre o que terá levado à renúncia pouco se sabe, e é por isso prematuro comentar. No entanto, o caso envolve, para já, uma questão política interessante, nomeadamente a de saber se quando votamos numas eleições estamos a eleger um candidato ou estamos a votar em partidos.
A resposta a esta questão é absolutamente crucial: se votamos em partidos, então o PCP ou qualquer outro partido tem todo o direito de substituir detentores de cargos políticos. Se votamos em candidatos então a acção do partido quebra a relação de confiança e as expectativas inerentes dos eleitores na eleição em causa. Nesse caso, a decisão é ilegítima e impõe-se a realização de eleições.
Mas a resposta não é simples. Em Portugal vivemos num regime legal de monopólio de partidos, mas estes estão efectivamente personalizados. De jure, elegemos partidos. Durante a elaboração das leis eleitorais, os partidos estabeleceram regras que garantem o predomínio dos partidos, e das cúpulas partidárias em particular, na determinação dos eleitos.
Isto acontece porque sendo o sistema eleitoral proporcional e de lista, as listas apresentadas são fechadas, isto é, a ordem pela qual os candidatos são eleitos por cada partido é predeterminada, não podendo o eleitor exprimir qualquer preferência por um candidato na lista do partido em causa.
Além disso, os partidos são muito pouco descentralizadores internamente na feitura das listas.
Assim, quando votamos, seja nas legislativas, seja nas autárquicas, ou mesmo para as eleições ao Parlamento Europeu estamos na verdade a eleger partidos (as eleições presidenciais são a excepção óbvia a este padrão).
Se considerarmos a perspectiva de facto, isto é, a de saber se as pessoas votam em partidos ou em candidatos, a resposta é mais complicada.
Em primeiro lugar, os estudos empíricos que existem centram-se apenas nas eleições legislativas. Apesar dessa limitação, estes mostram que os candidatos dos principais partidos são absolutamente cruciais para as escolhas do eleitorado. Mais do que as características sociais do eleitor, a sua religiosidade, as suas pertenças associativas, os candidatos são determinantes na escolha dos eleitores. E o que sabemos da personalização dos mandatos autárquicos não sugere que as coisas se passem de forma substancialmente diferente no poder local.
A personalização efectiva da política é uma realidade em Portugal e depende de muitos factores, entre os quais a fraca implantação social dos partidos, o facto de a democratização ter ocorrido num período em que os meios de comunicação de massas estavam já plenamente desenvolvidos em Portugal e também devido à fraca diferenciação ideológica entre os principais partidos.
Acontece que o PCP, partido no centro desta polémica, tem sido uma excepção a este quadro de personalização da política. Nos estudos efectuados, este partido revela sempre maior ancoragem social e ideológica do que os restantes, com a menor importância correspondente do líder na explicação do voto dos eleitores comunistas.
Nessa medida, não podemos saber quanto "valeu" Carlos Sousa ao certo na eleição autárquica em Setúbal há dez meses atrás, e o que sabemos sobre o PCP noutros contextos eleitorais não nos permite afirmar com segurança que este tenha sido decisivo para a vitória dos comunistas em Setúbal.
Parece-me que não se podendo dar respostas definitivas, cada vez mais a legitimidade dos partidos, e das cúpulas partidárias, depende de uma relação mais transparente com o eleitorado. Os eleitores estão tendencialmente mais informados sobre os acontecimentos políticos, e o aumento da educação significa que os partidos correm mais riscos do que anteriormente ao agir de forma autoritária e autista. A cultura política dos portugueses tem evoluído na direcção da crescente descredibilização dos partidos, e na valorização de candidatos, e nem sempre pelas más razões. Em Portugal, não são os menos informados e os menos educados que dão mais importância aos candidatos, o que sugere que serão as capacidades políticas e de gestão que contam. O que é legal nem sempre é legítimo."
Marina Costa Lobo
Politóloga