Porém, só uns breves dias após, atingi o alcance e o profundo sentido dos erros da governança socrástica, consentidos num exercício de autocrítica, antecipado à pressão para o período vital do pós euro-hecatombe. E os assumidos erros, impregnados de humildade e de escrúpulo democrático, desta feita foram revelados, não na rudez e aspereza do papiro, como outrora, mas na leveza e suavidade do papel de cópia de 80 gramas da Xerox, onde foram delicadamente impressos os “Novos Diálogos de Platão”. De entre eles, subitamente, um toma forma e dimensão de tremebunda fatalidade: “deveríamos ter investido mais na cultura!...” Ah pois era... pois era... Mas se lhes serve de consolação, é bom que se acentue que tal desmesura para com a erudição já não é de agora, já vem do tempo do Botas. E como não constava nos três D’s, também não se cumpriu...
Sem que nada o fizesse prever, a fazer fé nos contratos multimilionários e no ror de espectáculos aprazados para este verão nas capitais da civilização, heis que, sem tão pouco avisar os fãs, num “ai” exclamado entre uma última dose de morfina e um último aconchego nos tomates, imagem de marca do seu inebriante estilo de king da pop e da dance, o artista negro que tinha vergonha da cor da sua própria pele sucumbiu aos maus tratos auto-inflingidos. E agora, o que será de nós sem Michael Jackson?
Bastou pois que o monarca da pop se tivesse finado para que “o país e o mundo” passassem a respirar ao ritmo da informação espectáculo de última hora, e ao compasso da habitual corte de carpideiras que povoam este cada vez mais bizarro planeta. Televisões, rádios e jornais, em uníssono, passaram a dedicar-se em exclusividade e em contínuo ao drama, ao horror e à tragédia da morte do popular artista. Num repente o mundo esqueceu o Irão, o avião da Air France, a pandemia da gripe, a crise internacional, as orgias e as snifadelas de Berlusconi, e o país, afilado aos mais rigorosos ditames da modernidade informativa afinou pelo mesmo pífaro, deixando para trás das costas e da irreparável dor causada pela morte precoce da pop star, a crise, o desemprego, a compra da TVI pela PT, os assaltos ao BCP, BPN e BPP, o Freeport e a sua procissão de arguidos, o TGV e mais o aeroporto, e mais a Autoeuropa e mais uma resma de empresas que ameaçam fechar a qualquer espirro de uma inocente e anónima borboleta asiática. Tudo se passou a centrar em directos e indirectos de Los Angeles e de outros lugares com nome e sem nome, entrevistando todo o bicho careta com uma história extraordinária para contar sobre o já mítico cantor bailarino. Desde a velhinha que rogando à providência da Sra. de Fátima, para que lhe curasse a ciática, viu surgir de uma nuvem negra, em lugar da dita senhora, o espectro descolorido do milagreiro Michael, envolto num fato espacial de latex, até um jornalista que um dia esteve a menos de um metro da vedeta e que quase, quase, lhe sentiu o bafo a leitinho com essências de baunilha, tudo foi chamado a opinar sobre a figura, o estilo e o legado. E não fora alguns vícios menos recomendáveis, por certo até já estaria na calha para fazer companhia ao Condestável, o tal que chacinava espanhóis como quem comia tremoços, ou então, como dizia um apreciado crítico musical num manifesto e incomodo exercício de branqueamento de capital humano: “separe-se o homem do artista”. Pois, pois, mas eu não consigo, meu caro. As minhas desculpas. É quase como pedirem-me para venerar o brilhante professor de Coimbra e para olvidar o bolorento ditador de Santa Comba. Os meus escassos recursos intelectuais não aguentam a intricada equação: homens quase perfeitos num mundo quase perfeito. Falta o quase...
Confesso contudo que não me dei por vencido, apesar da dose maciça de Michael, sósias, imitadores, fãs, conhecidos e outros mamíferos, que tentavam saltar do pequeno ecrã e inundar a minha modesta sala de jantar, ao Casal da Formiga, sempre que tentava pôr no on o botão do televisor. Procurando olhar o fenómeno em abstracto e matutando um pouco no sucedido, o que no meu caso não é tarefa grata, consigo concluir o óbvio, estou a ver a questão sob o prisma errado. Afinal o sacrifício do verdadeiro artista sarou por dias as chagas da humanidade, incluindo as da Lusitânia. Donde se conclui que, se para resolver os problemas de um país à beira do abismo financeiro e de uma implosão social, com contornos por avaliar, for necessário sacrificar uns quantos artistas do show bis, então que se comece por descarregar a cartucheira da G3 no Toni Carreira que o povo lhe chorará os feitos e lhe saberá reconhecer os méritos. Garanto que o país lhe ficará grato para sempre, embora para a cultura a perda seja irreparável! É que bem vistas as coisas matam-se três coelhos de uma assentada: recupera-se o país, ignoram-se as aleivosias de mais duas campanhas por votos e faz-se um sério aviso ao outro Michael (o Carreira), à Floribela e às outras estrelas fumegantes das artes emergentes - Cuidado(!), não insistam em querer trilhar o sinuoso caminho da cultura, que podem ser os próximos artistas a pagar a crise. Um sacrifício a bem da nação e do ambiente!...