Empós quase dois terços (e algumas avé-marias) de mandato desfiado a jejuns e abstinências por esgotamento da capacidade de oberar, já que a pandilha cor de rosa tratou de secar os plafons, no culminar da barométrica auscultação angariada no porta-a-porta onde cerca de 9.000 almas (de acordo com os números oficiais) foram acarinhadas, compreendidas e a quem foram reveladas as grande linhas estratégicas, adiafa na sede Ordem com direito a anfiqri dos legítimos representantes da luta de classes, para prestar contas do… futuro. Sim só pode ser do futuro, já que o passado recente, assumidamente, tem sido de míngua, rigor e labuta, para endireitar o barco que os outros deixaram prestes a encalhar. Não fosse a pesada herança e já o navio rumaria a velocidade de cruzeiro em direcção ao porvir, locomovendo atrás de si o progresso e o bem-estar do povo trabalhador, ao som da Internacional. Não fosse o aperto do cinto imposto pelo pseudo-engenheiro e o contra-vapor da “oposição bota a baixo” dos seus serventuários da ex-capital vidreira, e o “programa ambicioso” que apresentaram em 2005 já estaria explanado por todo o território sede de concelho e ilhas adjacentes. Não fosse o “velho do Restelo” ter regateado o acordo ante-nupcial de reforma antecipada que levaria, na linha de sucessão natural, à entronização de novo monarca, de nova dinâmica e a um refrescamento da corte, e já a revolução estaria consolidada e o futuro garantido. Logo o decano comunista havia de cismar que lhe estavam a passar a perna e que nunca houvera qualquer pré-acordo, porque o casamento com o partido é indissolúvel e o compromisso com o povo é inalienável. Que chatice, só problemas…
E o balanço camaradas? De acordo com o porta-voz da organização o balanço é positivo “No fundo prestámos contas sobre a nossa política, da qual destaco como prioridade o saneamento básico e as acessibilidades”. Mau porra – fiquei baralhado. Será que me escapou alguma coisa nestes dois anos e picos? - e eu que pensava que a prioridade tinha sido desencalhar o navio...
Decidi por isso abandonar por horas o remanso do Casal da Formiga e dar uma volta pela cidade à procura de encontrar o fervilhar das máquinas esventrando a terra, colocando manilhas e colectores como uma rede de artérias, veias e capilares prontos a encaminhar para adequado tratamento, detritos, cocós e outros dejectos duma sociedade dita civilizada, procurando encontrar o frenético ruído das máquinas rasgando circulares de descongestionamento, fazendo o transito doutros destinos fluir, contornar a cidade sem lhe provocar desajustados aumentos da tensão arterial, procurando o bulício dos grandes empreendimentos estratégicos que operam as revoluções sustentáveis, procurando (simplesmente!) a marca d’água desta política cujo porta-voz, surpreendentemente agradado, declara para quem o quiser ouvir que as cerca 9.000 almas contempladas com o encontro imediato de 1º grau, se mostram satisfeitas com o trabalho desenvolvido.
Enquanto percorro a cidade, no velho auto-rádio que equipa a infatigável Ford Transit que me acompanha fielmente há mais de vinte e cinco anos na venda de candeeiros, por todo o país e arredores, e bem assim como noutras aventuras despudoradas onde os seus modestos amortecedores são testados até ao limite da resistência humana, duma cassete esquecida ecoa o som roufenho duma cançoneta doutros tempos “procuro e não te encontro…”, canta Toni de Matos com voz forte e sentida. Também eu continuo a percorrer a cidade à procura da razão de se ser poder e das apregoadas prioridades. E enquanto espero que uma alma caridosa me dê prioridade para entrar na avenida, no semáforo (há meses avariado) junto ao Cimarina, penso, o problema só pode ser meu, vou marcar com urgência uma consulta para o oftalmologista. É que já gastei mais de meio depósito e não vejo sinais de progresso, a cidade parece ter mergulhado numa profunda catáfora, parece incompreensivelmente adormecida. Talvez seja esse o segredo, concluo, é que enquanto se dorme todos os sonhos são possíveis. Até mesmo imaginar uma cidade que não existe.