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segunda-feira, 26 de fevereiro de 2007

As Farpas - pois é...

"Aproxima-te um pouco de nós, e vê. O país perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos, as consciências em debandada, os carácteres corrompidos. A práctica da vida tem por única direcção a conveniência. Não há príncipio que não seja desmentido. Não há instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não há nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Ninguém crê na honestidade dos homens públicos. Alguns agiotas felizes exploram. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos são abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias em cada dia. Vivemos todos ao acaso. Perfeita, absoluta indiferença de cima abaixo! Toda a vida espiritual, intelectual, parada. O tédio invadiu todas as almas. A mocidade arrasta-se envelhecida das mesas das secretárias para as mesas dos cafés. A ruína económica cresce, cresce, cresce. As quebras sucedem-se. O pequeno comércio definha. A indústria enfraquece. A sorte dos operários é lamentável. O salário diminui. A renda também diminui. O Estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo. Neste salve-se quem puder a burguesia proprietária de casas explora o aluguer. A agitagem explora o lucro. A ignorância pesa sobre o povo como uma fatalidade. O número das escolas só por si é dramático. O professor é um empregado de eleições. A população dos campos, vivendo em casebres ignóbeis, sustentando-se de sardinhas e de vinho, trabalhando para o imposto por meio de uma agricultura decadente, puxa uma vida miserável, sacudida pela penhora; a população ignorante, entorpecida, de toda a vitalidade humana conserva únicamente um egoísmo feroz e uma devoção automática. No entanto a intriga política alastra-se. O país vive numa sonolência enfastiada. Apenas a devoção insciente perturba o silêncio da opinião com padre-nossos maquinais. Não é uma existência, é uma expiação. A certeza deste rebaixamento invadiu todas as consciências. Diz-se por toda a parte: o país está perdido! Ninguém se ilude. Diz-se nos conselhos de ministros e nas estalagens. E que se faz? Atesta-se, conversando e jogando o voltarete que de norte a sul, no Estado, na economia, no moral, o país está desorganizado-se pede-se conhaque! Assim todas as consciências certificam a podridão; mas todos os temperamentos se dão bem na podridão!"
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Eça de Quirós - 1871 (até parece que foi ontem...)

1 comentário:

Anónimo disse...

As Farpas – pois é...

Meus caros, as minhas saudações.
Li este ‘post’ com prazer, até porque as Farpas são uma obra que, de quando em vez, revisito.
Poucas serão as obras da nossa literatura (nomeadamente na área da crónica e do ensaio de crítica política e social) que mantenham uma tão viva actualidade como este trabalho conjunto de Eça de Queirós e de Ramalho Ortigão...
Mas porquê uma tão longa perenidade destes textos?
Será que este facto se deve, exclusivamente, aos políticos que nos calham na rifa?
Em grande parte penso que sim. Mas nós, o povoléu, não podemos por o rabinho de fora, pois também nos cabe uma (grossa) fatia das responsabilidades!...

Referindo-se aos portugueses, alguém dizia que ‘é um povo que não se governa nem se deixa governar...’ ! E isto é, infelizmente, uma triste realidade. Constatamo-lo no nosso dia-a-dia.
No passado foi o que sabemos: políticos prepotentes e pouco escrupulosos e, na sua esmagadora maioria, com a mais completa incapacidade de programar o presente e, muito menos, de delinear o futuro...

Se remontarmos ao nosso século XIV e XV encontraremos algumas excepções a esta malfadada regra – vejamos os casos do Infante D. Henrique e, um pouco mais tarde, de D. João II. Devendo eu acrescentar ainda, em abono da verdade, o caso de D. Dinis...

Mais tarde, e talvez fruto das circunstâncias, vemos um Marquês de Pombal que, ainda que à bruta, delineou estratégias que, do seu ponto de vista, visavam a contribuir para que Portugal fosse levado a acertar o passo pela evolução industrial que se verificava por essa Europa, nomeadamente na velha aliada (e grande interesseira!) Inglaterra.

Seguiu-se depois uma série de tímidos ensaios quase todos incipientes que, de tão desgarrados, foram diluídos não chegando sequer ao conhecimento de grande parte da nossa sociedade.

Por parte deste povo dócil mas sempre pronto à crítica fácil e só disponível para aceitar medidas que o beneficiem no imediato, não existe (pelo menos disso tenho a impressão) a verdadeira vontade de contribuir para a construção de um país com futuro. A título de exemplo e ‘esquecendo’ o que fomos no passado, que as realidades também eram outras, deixamos algumas perguntas que me parecem pertinentes: 1- Não é verdade que confundimos a liberdade com libertinagem?; 2- Não é verdade que alguns (mas não tão poucos quanto isso!...) dos nossos jovens parece fazerem gala em não encarar a vida escolar com o afinco que lhes é exigido?; 3 - Será que já entendemos que a evolução que se verifica noutros países (com os quais nos sentimos com o direito de nos compararmos) é o resultado de muito trabalho colectivo e de muita organização?; 4 – Será, ao menos, que não arranjamos todas as desculpas e mais algumas para nos eximirmos ao dever do voto, sempre que a isso somos chamados?... …

Enfim, poderíamos estar para aqui a fazer uma listagem infindável das coisas que condicionam o nosso desenvolvimento, mas acho que todos as conhecemos suficientemente e, sobretudo, teremos a noção que um dos nossos maiores ‘deficits’ se encontra na enorme carência de cultura cívica de que, desde há muito, enfermamos...

Como é evidente, também eu alinho com todos quantos pensam que é da responsabilidade dos nossos governantes fazer esforços para ir alterando este crónico estado das coisas. Mas nós, os governados, teremos de fazer um esforço para, embora pugnando sempre pelo indeclinável direito que temos à liberdade (que não à libertinagem), contribuirmos para que a situação se altere de modo a que possamos ver desenhar-se um futuro que nos seja menos obscuro.

Em suma, não só precisamos de bons governantes (tanto nacionais como locais) como precisamos que nós próprios mudemos de mentalidade e que passemos a ter um pouco mais de amor-próprio…