E ao sexto dia Deus criou o homem...
Mas mal o Criador se aprestava para voltar aos céus e aliviar fadiga de tão intensa jornada, sentindo passos atrás de si, virou-se. A correr em sua direcção vinha um desassisado camarista de farta cabeleira branca, acenando freneticamente com algo na mão direita, enquanto a esquerda se enterrava no bolso, como que impedindo que algo se escapasse. “Olhe, se faz favor. Queria entregar o cartão do partido. É que os juvenis já não me dão crédito e tomaram-me por aziago.” E logo Deus se amargou de arrependimento por ter concluído a criação.
Porém, para assombro do próprio Criador, um anjo êufono e titubeante que vagueava por perto sem GPS, tomou-lhe a mão e proclamou em tom grave: “Segue-me camarada, que enquanto a luta de classes precisar de ti, serás um dos nossos. Busquemos o norte magnético!”. Perturbado, o Criador rompeu num pranto inconsolável.
Depois de um Outubro generoso, solarengo, com o astro rei a bailar por entre os ramos semi nus das árvores de folha caduca, entraram pelas frinchas da janela esconsa da minha sala-de-estar os primeiros arrepios de frio, um gélido calafate soprado do grande glaciar em degelo, fazendo recordar aos homens que a natureza acusa sinais evidentes de cansaço, de maus tratos e de sobre-saturação. Pela primeira vez este ano, aconchego três cavacas de sobreiro do Redondo na lareira ainda fria do verão, e acendo o lume com caruma, pinhocas e pequenos gravetos de pinheiro, apanhados na recta de Pedreanes numa tarde de sábado por finais de Setembro. Este é um luxo a que me permito, não tanto por vaidade mas mais por necessidade - sentar-me em frente ao lume num final de tarde a que a mudança da hora já acrescentou noite, lâmpadas de baixo consumo apagadas, um cálice de licor de leite degustado em pequenos sorvos, apenas iluminado pelo lume que baila em labaredas de azul-laranja, exalando resina, labendo as paredes escuras da chaminé - o ambiente que se impõe para um momento de introspecção. Talvez seja isso que falta a muito bom comuneiro cá da paróquia, parar para pensar! Reflectir!
Os acontecimentos patéticos sucedem-se e asseveram a crise de valor acrescentado que mina a nossa desventurada corte de homens d’ estado, o barriguismo prospera, a política decente, tão imprescindível como o cereal para o pão da boca, está mais do que nunca em roda livre, a preciosa alteridade esfuma-se numa prática de tiques comuns de la droite à la gauche, pois o denominador é o comum, insensatez e muito, mas mesmo muito, despudor!
Talvez por isso um duche frio e uma valente coça de bagaço de medronho pudessem pôr cobro às mais que evidentes e previsíveis estratégias já no terreno, gizadas em bolorentas reuniões de comparsas – gestão de silêncios à la carte, rajadas de metralha ao neo-liberalismo que engorda a própria continha, limpeza a seco das consciências e das responsabilidades, fazer crer que a preocupação maior somos nós, e tudo isto revelado apenas num facto, a tremenda incompetência para escolher os melhores. E será que estão disponíveis?
Mas a culpa de toda esta tragédia é sem dúvida da democracia, essa patomina das sociedades civilizadinhas que atribui um cheque-voto-surpresa a cada imberbe eleitor. A culpa é da porra do sofá que amolece o nervo da inquietação. A culpa é da merda da televisão que nos emprenha com novelas. A culpa é dos gajos que lá estiveram. A culpa é dos cicranos que lá estão. A culpa é da testosterona e da bola e do filho da puta do árbitro. A culpa é sempre dos outros. A culpa nunca é minha, tua, ou de outro cabrão qualquer! Neste país pequenino, nunca ninguém é culpado, e porquê? Porque os culpados são sempre uma desculpa para a nossa própria culpa. Fiz-me entender?
Pois que, para terminar, permito-me (permitam-me!), a contra-gosto, um inusitado pedido de desculpas pela severidade deste arrazoado, ela é apenas a expressão da desilusão que sinto ao olhar o lume que baila nesta modesta lareira do Casal da Formiga, mas que não liberta o calor que tanto desejo. Isto, confesso, para além do facto de hoje ter olvidado tomar o comprimido para os nervos. Coisas da andropausa. Mas, para além dessa milagrosa pílula que me põe os ditos nervos sossegados, como poderei eu ultrapassar esta incontida descrença? Poderá ainda restar a fé, dir-me-ão vossas senhorias. Mas, returco eu, como poderei confiar em quem cometeu tamanho disparate ao sexto dia?