A verdade é que tenho passado um bocado mal. A saúde anda ruim, já não é a de outros tempos, e uma hiperuricemia motivada pela maldita gota tem-me dado água pela barba. Se a tudo isto juntarmos os bicos de papagaio, a enxaqueca, o ardor esofágico permanente, o catarro persistente, mais o colesterol e a tensão descontrolada, uma unha encravada, uma espinha na garganta, o desconforto dos joanetes e a seborreia no cocuruto, facilmente se compreende que, apesar da época ser festiva, estou de rastos, desesperado, ao ponto de ponderar a hipótese de recorrer à bruxa boa do pasquim do Tózé, rogando-lhe os seus abnegados préstimos para me debelar das maleitas e para me levantar a moral, já que de prostração localizada também padeço.
Foi por estas e por outras que decidi, como noutros tempos, aproveitando uma nesga de soalheiro, dirigir-me directamente à pharmácia sem passar pelo calvário do SAP, para suplicar um bálsamo milagroso, uma alquimia que me devolvesse o espírito da quadra, a auto-estima, ou um simples paliativo para me fazer esquecer que os anos que vão passando como cão por vinha vindimada não auguram nada de bom, a não ser contribuir para o aumento da carteira de encomendas do afável Pina.
Introduzi-me num desses estabelecimento que agora ostentam uma cruz pisca-pisca verde e uma maquineta de senhas à entrada, tendo sido prontamente recebido com salamaleques e mesuras de circunstância por um beltrano de trato comercial e olhar distraído. Cumpridas as primeiras formalidade e enquanto o tipo ía esfregando vigorosamente as mãos com uma solução alcoólica, não fora eu também trazer o bicho da gripolina entranhado na cútis ou no sabugo, desfiei-lhe o meu calvário e quase que fui surpreendido pela sua resposta: “caro amigo, diagnósticos não são o meu departamento, a minha função é meramente aviar prescrições.” De facto senti confirmada a minha intuição à primeira mirada: o homem não parecia ter olho clínico. É certo que, recorrendo eu ao fim da linha, outra coisa não seria de esperar. Tentei nova abordagem: “eu bem sei que não é médico, por isso não lhe peço que encontre as razões da minha moléstia, mas tendo o senhor experiência na matéria e presumindo eu que até já lhe tenham passado pelas vistas casos similares, será que me podia aviar um alívio para o corpo?” Quase que fui novamente surpreendido pela sua resposta: “olhe que eu não sou o Pai Natal. Diga-me por favor o que pretende, pois tenho muito que fazer” - atirou meio distraído meio convencido, coçando com a tampa de uma esferográfica Bic, e já com visível irritação, a farta peruca astracã.
Agastado com tanta insensibilidade ao meu desespero e à minha hipocondria, joguei alto e decidi fazer bluff: “quem me disse que o senhor era muito jeitoso e que até era capaz de me ajudar, foi uma vizinha minha que vende mosquetas no mercado das barracas e que até é da sua criação”. Num zás deu-se o clique! Ao cheirar-lhe a panegírico, mesmo sem lhe ter reconhecido a origem – vá-se lá saber quem era a bisca vendedeira da sua criação, que nem eu sei quem é – o ego inflou e pronunciou-lhe um pescoço de perú a que o rubor acrescentou exuberância – “se é esse o caso” – aquiesceu com ar doutrinal – “vou-lhe já tratar da saúde!”. Bem dito, bem feito. Voltando-se para o ajudante, com voz colocada de comando, assumiu as operações e ditou o despacho de pronúncia, enquanto frenéticamente arregaçava as mangas da bata branca: “traga-me aí uma embalagem de aspirinas e uma caixa de Ferrero Rocher, para aliviar as dores deste amigo que sofre.” Baqueei perante tamanha bizarria.
A contragosto aceitei o saquinho publicitário contendo a milagrosa receita e respondi-lhe com mão mole ao cumprimento de despedida. “As melhoras” – disse ele mecanicamente e de olhar vagamente condoído, enquanto eu tentava desesperadamente alcançar a solução alcoólica para passar pelas mãos. “Obrigado” – respondi-lhe sem convicção. Na minha cabeça apenas uma coisa era certa – se o São Nicolau não existe, este ano não passo o Natal. Ele se quiser que passe por mim e que traga saúde! Para mim e para todos, são os meus votos.