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domingo, 8 de agosto de 2010

A ler Saramago (2)

Num país qualquer, num dia chuvoso de votação, poucos eleitores compareceram para votar, durante a manhã. As autoridades eleitorais, preocupadas, chegaram a supor que haveria uma abstenção gigantesca. À tarde, quase no encerramento da votação, centenas de milhares de eleitores compareceram aos locais de votação. Formaram-se filas quilométricas, e tudo pareceu normal. Mas, para desespero das autoridades eleitorais, houve quase setenta por cento de votos em branco. Uma catástrofe. Evidentemente que as instituições, partidos políticos e autoridades, haviam perdido a credibilidade da população. O voto em branco fora uma manifestação inocente, um desabafo, a indignação pelo descalabro praticado por políticos pertencentes aos partidos da direita, da esquerda e do meio. Políticos de partidos diferentes, mas de atuações iguais, usufruindo de privilégios que afrontavam a população. Os eleitores estavam cansados, revoltados. Os governantes, sentindo-se ameaçados, trataram de agir em nome da ordem, perseguindo, prendendo, maltratando, eliminando. Alguns que viveram os horrores da cegueira branca, novamente sofreram. Os governantes, preocupados em salvar a própria pele, em garantir o poder, não perceberam que a cegueira branca de outrora, demonstrativo de que há muito o homem estava cego, tinham paralelo com o voto branco de agora, indicativo de que a população não perdera a lucidez. Estranhamente, não houve uma mobilização para o facto.
A partir daqui desenvolve-se a trama do livro: o governo e as autoridades deixam a cidade entregue a si própria, abandonando-a e isolando-a. Acabarão por entrar em cena os mesmos personagens da obra Ensaio sobre a cegueira, pelo que se aconselha o leitor a fazer uma leitura desta obra antes de proceder à leitura de Ensaio sobre a Lucidez. Neste livro, Saramago desenvolve uma crítica mordaz às instituições do poder político: sob a democracia podem estar vetores de natureza autoritária - lúcido é quem os enxerga. Nas eleições legislativas de 2004 em Portugal, algumas organizações apelaram ao voto em branco, aparentemente na sequência da ideia de Saramago.

2 comentários:

Rogério G.V. Pereira disse...

Caro Folha Seca

É por isto que lhe chamo "Apostolo" na minha homilia de hoje...

(este texto será integrado na do próximo domingo)

Abraço

Flor do Liz disse...

"A lucidez é um luxo que nem todos se podem permitir."