Espreguicei-me a primeira vez marcavam os ponteiros sete e dez, mas só me ergui, constrangido por um incontrolável aperto na bexiga e com a uretra quase alagada, já o das horas tocava no oito. Levei a coisa a rigor como noutros tempos - tomei banhoca, escanhuei, untei os sovacos de desodorizante e vesti o fato de treino Desportex, impecavelmente vincado pela Lurdes Rata, a minha nova mulher a dias. Sobre uma camisa às riscas com três botões por casar, casaco de fato de treino aberto a três quartos, a adivinhar as peitaças, lá parti eu de bicicleta para a praça, exibindo com garbo um magnífico fio de oiro com a cruz de Cristo e um corno em marfim de dimensões generosas.
“É carago, Relaxoterapeuta, não foste à cama ou quê? Onde é que o vacão vai todo apinocado?” disparou Maria Suzete, calhandreira profissional do Bairro Mariano, mal tinha eu transposto o portão do quintal. “Foscasse Suzete, já um gajo não se pode levantar cedo para ir à praça. E a seguir vou à comprativa. Queres que te avie alguma coisa?”, “não vale a pena que ainda ontem fui ao Lider com a minha comadre”, despachou a vinagreira.
Chegado à praça decidi introduzir-me no funcional e arejado equipamento pelo “portão do peixe”. “Ó freguês, ó freguês, olha o carapau fresquinho!”, esganiçava uma pexina entradota acenando com dois exemplares meio esverdeados, agitados freneticamente nas mãos erguidas acima da cabeça. Olhei em redor, um asseio, um brinco, digno duma vistoria de olho arregalado dum zoiatra atento e dum acipreste voluntarioso. Ainda aprecei um robalote p’ra escalar, dos poucos que não eram de aviário (afiançou-me a pexina), mas quebrou-se-me logo o talante ao ver a balbúrdia que reinava na baiuca imunda e sarrosa - peixe, tripas, escamas, moscas, baldes de água suja por onde passava todo o “pexinho” amanhado, mais moscas, uma balança suja e desconchavada, um saco com notas e moedas (e escamas), uma caneca de café, restos de pão do pequeno almoço, uns tamancos e uma tabela de preços com moscas. Literalmente “uma caldeirada”. Mas pior fiquei quando olhei para o chão e vi a porra das calças de fato de treino, impecavelmente vincadas pela Lurdes Rata, e as alpercatas beiges, completamente encharcadas e decoradas com escamas. Francamente irritado não consegui conter um “foscasse, já me caguei todo!”. Pus as calças por dentro da meia branca com raqueta de ténis e segui caminho desconfortado.
Deixei para trás a gritaria das pexinas, mais as moscas, mais o peixe de aviário, mais as tripas, mais o ambiente climatizado, mais-grau-menos-grau, mais os baldes de “águas correntes” e mais as escamas, e entrei na “nave” principal da praça. Leguminosas, tubérculos, frutas, verduras, “o que me apetecia mesmo era um caldinho verde!”, pensei. Numa busca rápida tentei localizar a D. Alice do Valado, ou a D. Conceição de Amor, ou a Edite dos Cavalinhos. Em vão. “Já não conheço ninguém”, conformei-me. Foi então que ouvi uma voz trémula: “não leva nada?”. Virei-me e fixei um rosto cujos traços há muito não via mas que me eram familiares. “Então não se lembra de mim?” perguntou a anciã. “Sou eu, a Velhinha das Maçãs”. E era. “Aos anos que a não via…”, suspirei de saudade, “e eu a si”, retorquiu ela. “Então e a sua senhora, a dona Cintinha?”, “Está melhor que nunca!...”, despachei eu. “Então e vossemecê, como vai a venda?” questionei-a. Foi então que a Velhinha das Maçãs começou a desfiar o rosário. Contou-me que era a última (e a única) vendedora que ainda cultivava o que vendia, que o resto do pessoal não estava para isso e que compravam tudo aos espanhóis para depois venderem na praça e alguns nas suas lojas. Queixou-se da falta de fregueses, dos supermercados onde se vende tudo o que ali se encontra “e a preços mais em conta”, da falta de condições, e mais isto e mais aquilo e aqueloutro. A ladainha terminou como seria suposto, com a previsível e invariável frase “antigamente é que era bom!”. “Pois era, mas já lá vai…” rematei eu. Acabou por me oferecer uma couvinha p’ró caldo verde, com votos de “muitas felicidades e cumprimentos à dona Cintinha”. “Serão entregues!” afiancei-lhe despedindo-me da Velhinha das Maçãs.
Retomei a marcha e caminhei para nascente sem ter de romper por entre magotes de povo, como noutros tempos. Fui ao pão. O mesmo esmero, o mesmo asseio, o mesmo rigor regulamentar, aqui com a nítida vantagem dos farináceos não terem escamas nem cheiro a “pexinho”. Broa, bolos, enchidos, queijos. “Eram dois de centeio e uma broa, se faz favor”, pedi eu à jovem “padeirinha”, vestida com uma bata que carregava mais nódoas do que pecados a minha almanicha. Mostrou-me um sorriso com menos três dentes e enfiou a mão, envolta num saco de plástico “higiénico”, no ceirão do pão. “Aiiii, aiiii, um rato! Aiiii, aiiiiii, acudam...”. Rapazes, quando vi a cachopa a desfalecer e um ratinho empoleirado no cesto, saltei p’ra dentro da banca em socorro da catraia, espetei dois pontapés no ceirão, foi rato, foi padeirinha, foi pão! Pus cobro à aflição. O povo rodeou a banca, a padeirinha recobrou o ânimo e pasme-se, começou a insultar-me: “já viu, deu-me cabo da fornada! E agora? Parece impossivel, este espalhafato só por causa dum ratinho! E agora, quem é que me paga o prejuízo? E agora?”. “Agora, vou-me embora!” atirei eu já com a mostarda a subir-me ao nariz, “olha qui carago, vou em socorro da menina e ainda sou eu que tenho a culpa de estar um ratinho no poceiro do pão? Já não chegavam as calças a feder a peixe, ainda caguei o casaco de fato de treino com a porra da farinha!”. Senti-me injustiçado. Virei costas e deixei “meia praça” a discutir o sucedido e a dar razão à padeirinha. O costume...
Varado, contornei o recinto para me ir embora “por hoje e para os próximos dez anos já chega de praça!”. Absorto nos meus pensamentos de auto-comiseração nem reparei que entrei na zona das aves de criação. Apressado tentei alcançar o mais rapidamente possivel a porta da rua para evitar uma infindável sessão de espirros alérgicos. Mas a visita de estudo estava destinada a terminar em beleza. O chão, anti-derrapante e lavável, desinfectado três vezes ao dia, como obriga o normativo aplicável, encontrava-se abetumado de poia de galo, galinha, pintainho e pato. Nem vos conto. Perdi o pé numa cloaca avantajada e espalhei-me ao comprido, de bruços, sob a macia couvinha do caldo verde e meia dúzia de ovos duma senhora que estava a comprar pintos. Uma desgraça. Uma merda. Uma autêntica merda foi como ficou o fato de treino e mais a bela da couvinha oferecida pela Velhinha das Maçãs, decana dos produtores dos campos do Liz.
Ferido no orgulho (e numa asa), levantei-me e pontapeei com toda a fúria o que sobrava da couvinha. Passei pelo corredor das flores sem lhes respirar o pólen, para evitar novo ataque alérgico, e apressadamente cruzei a porta da rua com o alívio de quem acorda dum pesadelo. No preciso momento em que transpunha a soleira, em sentido inverso, um senhor já de idade, cabelho grisalho e pose institucional, envergando uma impecável réplica da fatiota de D. Quixote de la Mancha, entrava ufano e triunfal no mercado, saudando graciosamente vendedores, vendedeiras e fregueses, seguido de perto por um minorca barbudo que lhe servia de escudeiro. Ainda hoje estou para saber quem eram aquelas figuras saídas do livro de Miguel de Cervantes.
A caminho de casa, com a auto-estima em farrapos e o fato de treino em frangalhos, matutei na questão: “Será que vale a pena perder tempo com esta coisa do mercado? Por mim está o assunto arrumado! Enterrado! Vou à “comprativa” que é mais barato!”.
9 comentários:
Realmente...sem comentários!!!!!
Realmente a unica coisa que se tem feito é perder tempo com o mercado, será que não está na hora de quem de direito tomar uma decisão.
Excelente texto.
Mas afinal por onde anda o Delegado de Saúde do Concelho, tão celere a dizer que o mercado novo não tem condições para abrir e nada diz sobre o mercado velho que há muito devia ter mandado encerrar?????.Certamente que andará por outros caminhos, que não os da defesa da saúde pública.O que está a acontecer com os mercados, tem nome,e rosto.Nome, irresponsabilidade. Rosto. Presidente da Câmara da MG.
Caríssimo Relaxoterapeuta,
Não quero deixar de lhe agradecer mais este magnífico texto e, por ele, dar-lhe os parabéns.
Considero o seu texto magnífico, não só pela construção, mas também e, sobretudo, pela subtileza do conteúdo e da análise e ainda pela apresentação de um caso que o comum dos cidadãos reconhece como sendo um dos grandes problemas com os quais se debate a nossa cidade. Isto se o cidadão não for completamente vesgo, bem entendido!...
Quanto a este assunto estamos falados e pouco mais haverá a acrescentar no que respeita ao desaforo que é a não tomada de uma decisão que, definitivamente, acabe com o folhetim!
Há, no entanto, uma passagem no seu bem esgalhado texto que eu acho particularmente bem conseguida, para não dizer encantadora. Cito:
"No preciso momento em que transpunha a soleira, em sentido inverso, um senhor já de idade, cabelo grisalho e pose institucional, envergando uma impecável réplica da fatiota de D. Quixote de la Mancha, entrava ufano e triunfal no mercado, saudando graciosamente vendedores, vendedeiras e fregueses, seguido de perto por um minorca barbudo que lhe servia de escudeiro. Ainda hoje estou para saber quem eram aquelas figuras saídas do livro de Miguel de Cervantes."
Palavras para quê?!...
De facto há comportamentos que, só com recurso às figuras da obra maior de Cervantes, se poderão explicar.
Ficam os aplausos desta sua admiradora.
Aleluia!
Finalmente alguém fala do "óbvio". Como é possivel que o actual mercado continue aberto? Será que a ASAE está distraída?
Caro Relaxoterapeuta,
Apesar de ter ficado com o fato de treino num estado lastimável, valeu a pena ter ido ao mercado naquele sábado fatídico.
Parabens pelo excelente texto que escreveu...acredito que se sinta muito bem ao reler a forma magistral como soube transmitir as realidades desta terra.
Fantástico!
coitadinho... que pena, no melhor pano cai a ....
À atenção de Xuxa: ...a asneira, talvez, não?!
Ora aí está como um incauto cidadão com gosto por feiras medievais, saudoso e desportivamente aperaltado, não lhe bastando o desencanto da visita ao local histórico da velha resinagem, cai subitamente na trampa e ainda é perseguido pela visão assombrada de dois fantasmas errantes.
Bem urdida esta história que com todo o grotesco daria uma belíssima curta-metragem, a que me pareceu assistir ao ler o texto. É fantástica a descrição dos cenários, dos figurantes, dos adereços, e da própria acção. Desde a figura naif do protagonista (não deu uma corzita ao bigode?) ao surrealismo da banca da peixeira, à simpatia da horticultora solitária e resistente, para quem se recomendava o descanso merecido, ao ratinho da padeira, até ao estatelanço no mar de poias dos galináceos, tudo está bem engendrado, culminando com a aparição cómico-heróica dos cavaleiros da triste figura, atentos e ciosos do seu juramento, zelando para que tudo se mantenha no seu devido lugar. Só faltou incluir como figurantes, um ou dois putos, sujos e vestidos de trapos, com o nariz cheio de ranho, a pedir umas moeditas.
Como se vê, fiquei “tocado” com a trama. Gostaria é que à semelhança do enredo, a situação caricaturada fosse também ela de “curta-metragem”.
Mas na minha opinião, esta “fita” do mercado, é mesmo uma infeliz e desajeitada longa- metragem, onde, convém não esquecer, não há isentos de culpa. A começar, naturalmente, por quem nos propôs estes e os anteriores candidatos a decisores/gestores autárquicos. Enquanto os velhos critérios da escolha partidária se mantiverem, só por mera sorte teremos gente competente a gerir bem o presente e a programar o futuro do Concelho. Apesar disso, somos nós, eleitores, os responsáveis últimos pelos mandatos que conferimos.
É demasiado sério o que está em jogo na gestão autárquica para que a escolha possa ser assim confiada à sorte. É o desenvolvimento e bem-estar presente e futuro das populações que está em causa. Os meios a gerir, apesar de sempre exíguos, somam quantias astronómicas se as quisermos comparar com os orçamentos das empresas que os privados têm de gerir de forma competente, já que aí, a culpa não morre solteira e as consequências da má gestão são a falência e o desemprego.
A localização, concepção, realização e fiscalização do nosso “velho mercado novo” foram decididas pelos nossos eleitos. Como é possível que, tantos anos depois, parado e inútil, venha a Autarquia anunciar ser necessária uma despesa de 2,3 milhões de Euros (?!?!?!) para o abrir ao público?
O custo directo que o erário suportou, ao que julgo saber, foi financiado com recurso à permuta de terrenos, leia-se, um terreno valioso, no mais nobre local da Praia da Vieira a que se atribuiu um valor de 2 milhões de Euros (artigo sobre a coligação em http://www.psmarinhagrande.blogspot.com/).
Pois é. O nosso investimento, lá está, parado e inútil. Enquanto isso, no terreno da permuta, a iniciativa não pára. Numa primeira fase, talvez em metade do terreno, foram construídos e há muito vendidos, um ror de apartamentos. Naquela zona dita “nobre” o edifício, de inspiração pós Expo-98, tem volumetria e implantação estranhas, onde até a rampa da garagem ocupa parte do passeio público, a lembrar um estilo arquitectónico de Quarteira tardia. Agora, está em construção a segunda fase daquele empreendimento, com outros tantos ou mais apartamentos, que trarão a felicidade aos promotores e o desconsolo de quem pensava ser possível que a Praia da Vieira, com novas mentalidades, viesse finalmente a ter um crescimento harmonioso a que a sua beleza natural tem direito.
Isto para dizer, que os ditos promotores, a outra parte do negócio original do mercado, com maior ou menor respeito pelo ordenamento, souberam bem valorizar o seu investimento, enquanto que os nossos responsáveis autárquicos, antigos e actuais, é o que se vê e verá, e mesmo sem ser crente, acrescento, por mal dos nossos pecados.
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